segunda-feira, 5 de maio de 2014

REPÚDIO À REPRESSÃO DA PM EM ESCOLA DE APARECIDA DE GOIÂNIA

Viemos através desta manifestar nosso repúdio a ação da polícia militar na última quarta-feira (dia 30 de abril) no evento cultural-pedagógico-político Rock Repúdio Contra o Golpe de 1964 promovido pelo Colégio Estadual Dom Pedro I, em Aparecida de Goiânia. Na ocasião, sem qualquer justificativa, a PM espancou brutalmente estudantes e ameaçou os profissionais da educação que organizavam o evento. Deixamos nossa solidariedade aos estudantes e colegas da educação do Colégio Dom Pedro I. São fatos assim que reafirmam que o autoritarismo no Brasil ainda não acabou, apenas assumiu nova roupagem. Nossa missão como educadores é nos solidarizarmos, denunciarmos e, acima de tudo, lutarmos contra a opressão que continua "caindo como pedra sobre o povo". E os inimigos conhecemos bem: sabemos seu nome, seu rosto, residência e endereço.


NOTÍCIA NA TV:



RELATO DE RAFAEL SADDI SOBRE O OCORRIDO
Prezados, segue o meu relato pessoal sobre o pânico e o terror imposto pela PM ontem em Aparecida de Goiânia. Destaco mais o que eu vi, o que eu presenciei. Peço a todos que leiam, que reflitam sobre o ocorrido, e que divulguem. Peço especialmente aos colegas historiadores e estudantes de história, pois tratava-se de um evento sobre a história. Peço também a todos os educadores e professores, pois tratava-se de um evento educativo. Peço aos músicos, artistas, às bandas, aos organizadores de eventos culturais na cidade, pois tratava-se de uma atividade cultural que tanto vocês lutam para estimular. Por último, peço aos amigos que me conhecem e sabem que, apesar das provas terem sido quase todas destruídas pela PM, eu não faltaria aqui com o meu comprometimento com a verdade.


PARTE 1 – Um evento cultural e formador – a História nas ruas. 
Ontem ocorreu o evento “Rock Repúdio ao Golpe de 1964” em frente ao Colégio Dom Pedro I, em Aparecida de Goiânia. Tratava-se de um evento cultural institucional, organizado pela própria escola, onde a PM foi notificada pelo diretor da escola da realização do evento e solicitada formalmente para garantir a segurança do local. O evento cultural fazia parte de uma atividade formativa que professores da escola haviam implementado no decorrer de todo ano. Tratava-se de um projeto interdisciplinar, cujo objetivo, era discutir, a partir das diferentes matérias escolares, a experiência da ditadura militar no Brasil. Durante todo o ano, os alunos pesquisaram músicas da época, para tocarem no evento, bem como estudaram textos e documentos para comporem canções que foram apresentadas ontem. Eu havia sido convidado para tocar com minha banda, Señores, e estava muito animado, pois presenciei toda o ânimo dos alunos e dos professores na organização deste evento. Quando cheguei no evento, por volta das 19:00, pude constatar o quão bem organizado e estruturado estava a atividade. Haviam banheiros químicos instaurados, um palco muito bem montado, com aparelhagem de primeira qualidade, técnicos de som profissionais, etc. A atividade estava começando e muita gente estava chegando, especialmente, alunos da escola, mas, também convidados das diferentes bandas, professores de história de diferentes escolas, e outros profissionais liberais e trabalhadores da região. O evento começou com a apresentação dos alunos da escola, que apresentaram brilhantemente músicas de Geraldo Vandré e Eliz Regina, bem como composições autorais que fizeram sobre a temática da ditadura militar (a banda POEMA NEGRO é formada por alunos da escola e por um professor e fizeram um grande show, fechando com uma música que os alunos fizeram sobre o tema). Depois, foi a vez da minha banda tocar, o Señores, que durante o show forneceu o microfone para alunos fazerem comentários sobre a ditadura militar, demonstrando em suas falas grande conhecimento sobre desta experiência histórica. O ambiente era de muita alegria e diversão. Os alunos estavam bastante felizes. Os convidados que compareceram pularam, vibraram, se divertiam. Diferentes amigos, alguns deles professores de história em outras escolas, estavam bastante contentes com o caráter formativo do evento. Em uma sociedade em que grande da população afirma nunca ter ouvido o termo “AI-5”, é realmente animador ver uma geração de jovens com um grande conhecimento sobre um tema tão importante da nossa história. Depois do show do Señores, algumas pessoas subiram no palco e declamaram poesias sobre o regime militar. Foram ovacionados, pois foram realmente poesias muito belas. Terminada a sessão de poesias, começou o show de uma outra banda, muito boa por sinal, que infelizmente não pude saber o nome, posto que foi neste momento que a PM começou a agir.

PARTE II – O terror instaurado pela PM 
Pelo que presenciei, pelos diferentes relatos de amigos que estavam no evento e pela fala dos próprios PMs, com quem conversei o tempo todo, tentando acalmar os seus ânimos (atitude inútil por sinal) já é possível constatar que os militares foram para o evento não só com o intuito de encerrar a atividade, mas também com a intenção de gerar pânico e terror (como punição ao que consideraram um afronta à instituição fazer um evento na rua em repúdio ao golpe militar). Veja, durante as conversas que eu e outros professores e organizadores do evento tivemos com os PMs, vários deles, defenderam abertamente o golpe e o regime militar. Entendiam mesmo, embora muitos deles não tivessem ainda nem nascido na época (fala de um PM), que aquele regime era o regime em que eles comandaram o país. Um evento em repúdio ao golpe militar era, na percepção de muitos deles, e provavelmente de quem forneceu a ordem para acabar com a atividade, um evento de repúdio à PM. Um dos policiais afirmou claramente, depois da repressão, que o ato de um dos jovens ter urinado em um canto da rua (motivo que encontraram para iniciar a ação) não era problema algum, que o problema era terem convidado a PM para um evento em repúdio ao golpe militar. Dizia como se a instituição tivesse se sentido ofendida com a realização da atividade e com o convite feito a eles. (Esclarecendo. A solicitação à PM foi feita pelo diretor da escola. Não tratava-se, obviamente, jamais de uma provocação, mas de uma solicitação formal de quem acreditava que a PM estaria ali para garantir a segurança dos alunos da escola). Aqui é muito importante fazer uma reflexão: ficou famosa, em pichações na cidade, e também nas redes sociais, bem como em manifestações de movimentos populares, a frase: “A PM é o chorume da ditadura”. Essa continuidade do modelo militar de repressão também é analisada por vários especialistas do tema. Mas, desta vez, eu ouvia isso ou quase isso dos próprios PMs. Há mais do que uma continuidade na estrutura de polícia e no modelo de atuação e repressão, há também uma identidade, uma sensação de pertencimento. Isso é muito sério e muito grave para uma democracia. 
Como eu disse acima, a PM utilizou como pretexto para a ação, o ato de um jovem urinar em um canto da rua. Um amigo deste jovem, que também é um amigo meu de longos datas, se aproximou para presenciar a abordagem e não deixar que houvesse abuso na abordagem. Nesse momento, um policial o intimidou e deu um murro em sua cara. Aqui começou tudo. Foram pra cima dele e muitos amigos dele, dentre eles eu, tentamos protege-lo. O que fiz foi tentar manter a calma de todos, inclusive da PM. Dizia que o evento seria encerrado e que todos iriamos embora e que não precisava daquilo. Mas, não bastava encerrar o evento. Eles queriam gerar o pânico. Os policias foram invadindo o lugar, e batendo em um monte de gente, jogando spray de pimenta e atingido todos que estavam pela frente. Este meu amigo foi muito espancado e está com um hematoma na cabeça. Eles agiram em todas as partes do evento, espancando uma garota, que não deveria ter mais de 14 anos, na frente de todos. Os dois foram os que mais apanharam no lugar do evento, mas muitas outras pessoas receberam cacetadas gratuitas e socos dos brutamontes. 
Quanto mais a indignação das pessoas aumentavam com os espancamentos públicos que estavam ocorrendo ali, e com os sprays de pimenta que eram jogados em pessoas que estavam só observando de longe, mais a polícia partia pra cima e justificava sua atitude. Tudo indicava que ia ocorrer um massacre. Eu, como era um dos mais velhos, todo mundo era muito jovem, e porque me sentia protegido por ser professor de uma universidade federal e já pude constatar por várias vezes o tratamento diferenciado que já recebi por isso (inclusive ontem mesmo), subi no palco e fiquei falando no microfone para a polícia acalmar e para as pessoas também. Afirmei que o evento estava encerrado e que nós iriamos todos nos retirar pacificamente e de forma calma, que nos dirigiríamos ao 1.o. DP para acompanhar a pessoa que havia sido presa. Inútil. Continuavam batendo sem parar e tomando os celulares de todos que filmavam. Era muito policial agindo em diferentes focos. Não dava para acompanhar tudo. Mas, do palco dava pra ver todo o cenário. Era assolador. 
Neste primeiro momento, duas pessoas foram levadas presas: este meu amigo que foi muito espancado e uma professora de outra escola, professora que tentava impedir a agressão de seus alunos que também estavam no evento. 
De repente, eles desligaram as luzes da região, ficou um breu completo. Muito escuro. E as pessoas começaram a se dispersar com muito medo. Foram saindo em grupos cada um para um canto. Nessa hora, era obvio. Eles vão descer o cacete na geral. Dito e feito. Como todo mundo se espalhou pelos becos do centro, as viaturas saíram rodando o centro e enquadrando os grupos de amigos e de jovens que iam embora pelos becos da cidade. Um amigo que havia entrado no seu carro e se dirigia para o 1.o. DP, viu os PMs de uma viatura espancando uma das alunas que voltava pra casa em um beco. Ele parou o carro e os PMs foram para cima dele, obrigando-o a ir embora. Continuaram batendo na menina. Não sabemos quem era, nem o que ocorreu com ela.
Eu, que também peguei o carro para me dirigir ao 1.o. DP, presenciei uma viatura que parava outra turma em outro beco. O grupo de jovens estava deitado no chão com a cabeça no meio fio. Sabia que era inútil parar. Mas, me arrependo profundamente de não ter parado. Sabe-se lá o que fizeram com esta molecada.
Quando cheguei no 1.o. DP, os PMs já estavam aguardando o pessoal do evento na rua de entrada. Tinham enquandrado em torno de 15 jovens que estavam na parede do 1.o. DP recebendo baculejo. Demos a volta e chegamos à porta do DP por baixo. Chegando lá, tinham muitos que chegaram comigo em outros carros e no meu carro, nós fomos todos empurrados para um lugar em que não podíamos observar o que faziam com o pessoal que estava recebendo baculejo. Pense a impotência, vendo e sabendo que aqueles meninos seriam espancados, não podíamos fazer nada. Um dos meus amigos, conseguiu chegar um pouco em um rumo que dava pra ver e conseguiu filmar. Rapidamente, a polícia se jogou em cima dele e o levou para junto dos demais. Eu e outras pessoas tentamos impedir. Eu dizia que era professor da UFG e que aquele aluno era meu aluno e que eu era responsável por ele. Nesse momento, levei um empurrão de três policiais que me jogou longe. Ouvíamos as pancadas, os gritos e não podíamos fazer nada. Amigos de jovens que estavam enquadrados, agoniados gritavam que eles não podiam fazer aquilo, até que dois deles, foram encurralados na parede, do meu lado, na minha frente. Era um casal, um homem e uma mulher. A menina tinhas uns 20 e poucos anos. Começaram a dar socos fortes na cara dela e do namorado. Ficaram ali batendo neles e a gente tentando impedir inutilmente, pois eramos empurrados e ameaçados por outros policiais enquanto alguns brutamontes socavam a menina em uma enorme covardia. Eram enormes, estavam armados, eram muitos. Éramos impotentes. Conseguimos retirar o casal de lá e alguns amigos deles os levaram pra casa. O homem estava todo sangrando e a garota tinha a cara inchada com os socos. Muita gente, amigos, pessoas sensíveis, choravam muito ao ver a cena. 
A coisa só acalmou quando os advogados chegaram. Por nossa sorte, haviam pessoas que foram curtir o show e o evento, que faziam parte de movimentos sociais, mais especificamente, do Tarifa Zero e da Frente de Luta pelo Transporte. Foram eles que conseguiram chamar os advogados Nathalia Oliveira e Gustavo Sabino. Sem eles, os presos não teriam sido soltos. Alguém também contactou o deputado Mauro Rubem, da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara, que também compareceu. 
Durante todo o evento, eu falava por telefone com minha esposa, pedindo para ela entrar em contato com o Ministério Público e que era urgente chegar alguém ali, pois estava ocorrendo um verdadeiro massacre. Inútil. O ministério público estadual de Aparecida não faz plantão. 
Quando os advogados chegaram, os que estavam enquadrados foram liberados e pudemos conversar com alguns deles. Todos, sem exceção, foram espancados. Uns mais outros menos. Um deles, um amigo meu de longa data, teve a cabeça aberta pelo cassetete de um PM. Isso ocorreu enquanto estava virado com as mãos para a parede. Covardia. Sua cabeça sangrava muito e o sangue estava espalhado por sua camisa. Outro amigo, que também estava enquadrado, teve o seu celular revirado. Pegaram o telefone do emprego dele, reviraram outros telefones de sua agenda, anotaram os dados de sua identidade, apagaram os três vídeos de agressão que ele havia filmado, e o intimidaram, afirmando que sabiam onde ele trabalhava. Por afirmar que era professor, ele apanhou pouco. E, por isso também, o intimidaram de forma mais ofensiva. Se falar algo, morre. 
Durante toda a operação, a polícia destruiu todas as provas, intimidou e ameaçou todos os que foram espancados, caso denunciassem. Eu mesmo presenciei isso tudo. Vi destruírem provas e ameaçarem os espancados, além de presenciar vários espancamentos. Não todos, porque foram muitos. Ao mesmo tempo, eles forjaram várias provas para justificar suas atitudes. Levaram duas adolescentes em suas viaturas para afirmarem que o meu amigo preso tinha agredido uma policial. Sim, enquanto ele era segurado e espancado, tentando se livrar do espancamento ele forneceu coices para todos os lados e um deles acertou em uma policial. Mas, as testemunhas foram forçadas a confirmar que ele agrediu a policial. Eu mesmo ouvi o que elas diziam ao serem intimadas a entrarem no carro. Uma delas dizia respondendo ao policial que afirmava que ela havia visto tudo e que tinha que ir na delegacia com eles ser testemunha: “eu vi que no meio da confusão, o chute dele acertou uma policial”. Chamo atenção aqui para o “no meio da confusão”. Ela queria dizer que ele não simplesmente foi lá chutar a policial. Mas, que sim, no meio do espancamento, um dos chutes acertou a policial. Ao mesmo tempo, arranjaram um monte de estilingues e garrafas que segundo eles provavam a baderna que estava sendo feito. Ninguém, ninguém utilizou uma arma que seja, nem uma pedra, nem um estilingue, nem nada, contra um policial que fosse. Toda a repressão foi completamente gratuita. Enfim, isso foi o que eu vi, o que eu presenciei e o que eu constatei conversando com as pessoas que confio e com os policiais no momento da operação. Fica o sentimento de impotência e uma certeza: a de que quando o presente começa a se parecer demais com o passado, é hora de exigir outro futuro.

TEXTO NO DIÁRIO DA MANHA


NOTA DE APOIO AO PROFESSOR THIAGO OLIVEIRA MARTINS

No dia 30 de abril de 2014, professores, estudantes e moradores ligados ao Colégio Estadual D. Pedro I, em Aparecida de Goiânia, foram vítimas de agressões desnecessárias por parte da Polícia Militar de Goiás, em um festival intitulado Rock Repúdio ao Golpe de 1964, organizado por professores do Colégio D. Pedro I com o apoio da comunidade e de professores de outras escolas. A PM, solicitada para dar segurança ao evento, que ocorria no meio da rua, acabou interiorizando a crítica contra o Golpe Militar de 1964, e sentiu-se na obrigação de acabar com a festividade e oprimir os participantes.
A postura ideológica da PM chama a atenção: repudiar a Ditadura Militar é sujar a memória da corporação. Indo além de princípios básicos, como cidadania e liberdade de expressão, os policiais militares presentes na ocasião, se acharam no direito de agredir de forma deliberada os participantes do Rock Repúdio ao Golpe de 1964.
Os alunos da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, formalmente representados por essa nota, demonstram total indignação à atitude da Polícia Militar de Goiás, no que pode ser considerado um exemplo de falta de ética e responsabilidade pela segurança dos cidadãos goianos. Partir para a agressão generalizada em nome de postura ideológica equivocada, utilizando-se das vantagens asseguradas pela ideia de violência institucionalizada, é dar mostra de descaso em relação à vida e à integridade física e moral de outrem, em um jogo que enfatiza a noção de “corporação”, em detrimento da ideia de patrimônio público.
Exemplos como esse não são novidade: em manifestações civis, como os atos pela melhoria do transporte coletivo metropolitano, é notória a postura de provocação aos manifestantes, para que qualquer detalhe torne-se justificativa de uma intervenção agressiva por parte da polícia. Abordagens de rotina já se tornaram sinônimo de agressão no imaginário urbano. É por isso que uma nova postura frente aos abusos de autoridades públicas faz-se necessária.
Contra abusos de autoridades e em nome de uma postura crítica a ideologias que legitimam períodos conturbados de nossa história, nos posicionamos. E é assim que deve ser: o fatídico 30 de abril de 2014 não será esquecido.
Em nome dos estudantes da Faculdade de História da UFG manifestamos publicamente nossa admiração ao professor Thiago Oliveira Martins e total apoio à sua iniciativa de criação do projeto cultural “Rock Repúdio ao Golpe de 1964”. Também parabenizamos a todos que mesmo apesar do ocorrido mantiveram seu comprometimento com a verdade, relatando as atrocidades cometidas pela PM bem como defendendo os alunos e funcionários presentes no evento, dentre eles o professor doutor da FH-UFG Rafael Saddi.

Goiânia, 04 de maio de 2014.